Excerto do Livro
«As explicações no entanto ficaram adiadas, pois ao fundo da cocheira, numa zona ainda mais escura, alguém se pôs a gemer baixinho. A criança, indiferente à presença deles e do homem que acabara de chegar, dirigiu-se para lá, com a mão esquerda no ar e a agulha espetada em direcção ao tecto.
O que tencionaria fazer?
"Se calhar este miúdo não regula bem", pensou o João, "querem ver que vai picar a pessoa que está ali como fez à centopeia?"
Automaticamente, e sem trocar impressões, foram atrás dele até ao recanto escuro.
Envolto numa capa muito velha e esfiapada, enroscado sobre si mesmo, jazia um ser humano, que não se percebia se era homem ou mulher. Tinha as mãos crispadas sobre o rosto, e gemia, gemia, como se estivesse a sofrer muito.
"Mais um atacado de peste negra", pensou a Ana, condoída. "Deve estar na fase em que a peste dá imensas dores!"
O mesmo pensavam o Orlando e o João. Mas o que se seguiu fê-los mudar de ideias e deixou-os assombrados! O rapaz ajoelhou-se ao pé do doente sem nada dizer. Afastou-lhe as mãos da cara, deixando em evidência que se tratava de um homem de meia idade.
Depois, num tom inesperado de comando, ordenou:
— Abre a boca!
Sem se atrever a perguntar para quê, ele obedeceu prontamente e D. Lopo, com o mesmo ar circunspecto, enfiou a agulha várias vezes pela boca do homem tocando-lhe ao de leve num dente molar.
— É canhoto — constatou a Ana, observando aquela cena espantosa.»
(in O Ano da Peste Negra, pp. 73-74)